Talvez seja politicamente incorreta minha
louvação. Acho, até, que não faltará quem a considere infantilidade, lapuzice,
inospitalidade, e por aí vai. Discordo. Foi bom. Ah, como foi! Lavou nossa
alma! Vou contar pr’ocês.
Era o dia 09 de setembro, ano de 2006. O jogo: CRB x Atlético/MG. Nosso Galo
ainda não havia caído tanto na classificação (no momento em que escrevo,
encontra-se em 13º lugar), portanto o velho Trapichão iria estar todo vestido
de vermelho e branco. Aliás, o nosso é o verdadeiro, pois que de campina,
enquanto o outro é preto e branco, mera, e mal tirada, cópia. Como diz o
Andrezinho, quem já viu galo preto e branco? Só se for xerox.
Mas vamos aos fatos. Chegamos ao estádio com mais de 1 hora de antecedência,
como quase sempre acontece. Dessa feita, além do meu filho, acima, levei também
minha pequena Ananda (jogo à tarde ela exige que a leve junto, e eu cedo) e
minha namorada, Dolly. Conosco, como de praxe, o Ranulfo (dessa vez sem o “tio
Lula”, que estava em Salvador) e o Canuto (também, como eu, André), que também
se fez acompanhar por sua namorada, Mariana.
Logo após chegarmos às cadeiras superiores do Rei Pelé, percebemos a entrada de
alguns torcedores do galo imitação (porque falso, escrito sem a inicial
maiúscula). Chamá-lo-ia pinto, pejorativamente, não fosse a possibilidade de
ser confundido com o querido Pinto da Madrugada. Assim, apenas galo. Bem
minúsculo. Acho que eram uns 10. Por aí.
Amigo leitor, eram chatos! Nada contra mineiro. De jeito nenhum! Problema
algum, tampouco, que entrassem no nosso Trapichão (afinal, suponho tenham pago
pra isso), assistissem ao seu time defender-se acomodados nas cadeiras do nosso
estádio, e que, até (suprema condescendência nossa), viessem paramentados com
sua indumentária de gosto no mínimo discutível. Afinal, somos civilizados. Mas,
pô, respeito! Afinal, estavam em nossa casa. E, aí, não respeitando,
mal-educados são eles. Não podiam, outrossim, ficar provocando, quase todo o
tempo em pé, a berrar histéricos quando seu time conseguia passar do meio de
campo, e, imperdoável heresia, aproveitando-se do nosso grito de gaaalo(!!),
para conosco fazer coro — com as mais deslavadas ironia e boçalidade, — isto
sem falar nas vaias ao Regatas. Parecia que éramos todos uns apalermados, uns
provincianos bobos que teriam que aceitar passivamente suas pantomimices e
alaridos provocativos. Talvez esse não fosse o comportamento de todos eles, mas
parecia.
Pois bem, antes da metade do 1° tempo, meu irascível amigo Canuto saltou de sua
cadeira e, num arroubo de irresignação incontida, mandou-os pôr fim aos
guturais ruídos que produziam. O fez sem muito comedimento, é verdade.
Tachou-os de filhos disso, bando daquilo, mandou-os tomar, deixe ver..., deixa
pra lá; enfim, essas coisas pueris que comumente se alardeia em estádios de
futebol. Nada, porém, que pudesse chocar o ouvido mais sensível, ou que já não
fizessem por merecer. Naquele momento, porém, sua voz justamente inconformada
não encontrou ressonância nos cérebro e coração dos alvirrubros presentes,
decerto porque a peleja ainda mal se iniciara, o CRB ainda não havia levado o
único gol da partida, — ao contrário, a expectativa era de vitória, tal o
acuamento do galo face à pujança e ao notório melhor futebol do Galo, — além do
que o teor alcoólico dos presentes, acho, ainda permanecia em patamares
sobremodo módicos. Foi aí que vi o quanto somos civilizados. Ou bobos.
Acalmei-o. — Fica quieto, Canuto. Deixa pra lá! Confesso que me senti dividido:
meio civilizado, meio bobo. Mais bobo, acho. Exatamente por tanta civilidade.
De qualquer forma, havia os filhos, a namorada... Talvez a distância dos 20
anos... Fosse em outra época... Hum.
Fim do 1º tempo. A essa altura, o semblante dos alagoanos começava a mudar. O
meu idem. Já havíamos levado o fatídico gol. Estivéssemos vencendo, decerto
nada aconteceria. O CRB tem, assim, sua parcela de culpa pelo que virá, acabo
de concluir. Pois bem, comentávamos, nós e os demais amigos e conhecidos, em
tom visivamente irresignado — como fácil se percebia só pelo tom vocal que emanava
de nossas cordas —, que parecia em Maceió não existir homem. Cabra macho,
sacomé? Pô, os caras vêm a nossa casa, deixamos que se instalem em nossas
confortáveis (nem tanto) cadeiras, metidos em suas camisas de cores dissonantes
(feias de doer), e ainda aceitamos, passivamente, que “tirem onda” conosco,
cheios de desdém e soberba? Se fosse no Mineirão, e fôssemos para suas
cadeiras, ficaríamos quietinhos, sem “dar um pio” (viraríamos pintos mudos,
sequer galos), e talvez nem devidamente paramentados fôssemos (salvo se
ficássemos no local reservado à torcida visitante). Mas eles... Ah, eles
estavam se sentindo em casa! Uma diversão, só! Mas não contavam com o Ranulfo.
Início do 2º tempo. Por volta, já, dos 15 minutos iniciais, continuam afoitos,
barulhentos e irônicos, a despeito de que a forte retranca do seu time
começasse a deixar claros, por onde se podia vislumbrar possível (ainda era
provável, em nosso imaginário) gol de empate. O CRB continuava a pressionar,
mas sem competência. A torcida, naquele momento, silenciosa. Mas com uma ira
contida, perceptível nos mínimos gestos de cada torcedor. Foi quando, do nada,
irrompe o brado retumbante do Ranulfão (parecia que estava com um alto-falante
na garganta), mais ou menos assim: — P*, cala a boca, p*! Ninguém agüenta mais
esse cacarejo! Cês tão em nossa casa, seu time tá ganhando e ninguém tá
incomodando vocês. Mesmo assim, desde que chegaram, não param de provocar.
Respeitem, p*! Tão pensando o quê? A partir de agora, a coisa vai mudar, tão
ouvindo?! É pra ficar tudo calado, ou vão sair debaixo de porrada!
Rapaz..., foi um alvoroço geral o que se seguiu. Não passaram mais do que 10
segundos — necessários e suficientes a se entender o que se passara — e
começaram a irromper apupos e palavrões os mais diversos, vindos de todos os
lados (e perigosamente ao redor dos forasteiros). Ouviam-se, claramente, fortes
coros de viado (assim, com “e”), referências nada elogiosas às inocentes
genitoras,... esses mimos. Quando dei por mim, já havia subido pelo menos umas
duas cadeiras acima da minha, para fazer-lhes ouvir melhor meus agora nada
civilizados protestos, o que, entretanto, se me mostrava impossível dado o
ensurdecedor barulho que já se formara, alcançando as cadeiras dos demais
setores, além das arquibancadas vizinhas, de um e de outro lado, onde ficam
algumas torcidas do Regatas. Andrezinho, por sua vez, estava sobre outra
cadeira, ao meu lado, gritando, também — digamos — palavras de ordem, dando,
assim, os primeiros passos no exercício de sua, ouso dizer, cidadania. Mandei-o
de volta à sua cadeira. Voltei também. Expliquei-lhe que a reclamação e o
protesto verbais eram o limite. Ele entendeu. E falou, depois, pra mim: — Pôxa,
pai, agora sim! Tinham que nos respeitar, ora! Tranqüilizei-me, com seu
veredicto, e também à minha pequena e à Dolly. Dirigi mais alguns vocábulos aos
forasteiros, até me dar por satisfeito. Felizmente a polícia já os havia
cercado, protegendo-os dos mais afoitos alvirrubros, que rapidamente agarraram
(ou tentaram fazê-lo) o colarinho de um ou de outro. O mais alterado dos rivais
foi expulso do aprazível (não fossem eles) recanto, protegida sua incolumidade
física por nossos valorosos guardas, que cumpriram, sem reparos, o seu papel.
Os demais permaneceram, mas protegidos de perto pelos policiais. Sentados,
bandeira aquietada e, o melhor, em silêncio, em completo silêncio.
Durante todo esse tempo — foram alguns minutos —, como prosseguisse o jogo à
revelia de nossa ira santa, voltamos-lhe nossa atenção, somente dos invasores
nos lembrando quando o Ranulfo — apropriadamente referido, a partir de então,
como nosso xerife — levantava-se para investigar se tudo permanecia na devida
ordem, não se descurando de alertá-los, dedo em riste, para assim permanecerem,
no que era prontamente atendido, haja vista a quietude que de lá emanava.
Faltando alguns minutos para o fim do jogo, nossos outrora detratores deixaram
o estádio, sempre com a nossa polícia cidadã garantindo, por cautela, sua
incolumidade física, sob os mais ruidosos apupos e palavras grandes (palavrões)
gritadas.
Pode parecer exagero — talvez pareça, para quem nunca assistiu (ou não gosta,
ou os dois) a um jogo de futebol, como torcedor. Mas quem o já, sabe do que
estou falando. Arrisco até filosofar, para defender que a questão transcende
aquele esporte. Na verdade, penso que tais atitudes refletem a lembrança de que
há sangue correndo nas veias, de que ainda temos brio, de que estamos em nossa
casa, e, por isto mesmo, exigimos respeito. Só respeito. Legal! Muito bom!
Muito bom, mesmo! O Galo perdeu. Mas valeu o jogo. Aí, Ranulfo: obrigado!
Dia seguinte...
Triiimm!! Triiimm!!
— Alô?
— André? Sou eu, Ranulfo...
— Diga, aí, velho! — sua voz de sono denunciava acabara de acordar.
— Rapaz..., qué que’u fiz, me’rmão? Exagerei? — a ressaca moral era notória.
— Nada, Ranulfo. Volte a dormir. Fez nada.
Voltei, também.
___________
Pub. originariamente no antigo Blog do AnDRé fALcÃO em nov.2007